A História em Angola: contando a Nação no Mundo e o Mundo na Nação
Joseph C. Miller
University of Virginia
A história, como campo epistemológico, é uma
construção cultural moderna, intensamente política, porque a disciplina é
produto da criação, da invenção do Estado político moderno no século dezenove, quer
dizer: a nação moderna. É por isso que a definição inicial da disciplina moderna
de história, há uma centena de anos (talvez mais), destacou-se segundo as
linhas gerais das nações mais modernas na Europa, e depois as repúblicas novas das
Américas, num coro de comemorações de heróis nacionais, os país fundadores dos
países: militares, políticos, presidentes, assim como as batalhas que definiram
e formaram estas entidades territoriais. É por isso que a África, dentro deste
ótica bem definida, desta ótica sobretudo estreita, não tinha “história”. É por
isso também que temos, em todos os paises do mundo, cursos de história
centrados nas suas histórias nacionais, inclusive na África. Nos Estados Unidos
da América, por exemplo, temos faculdades de história uniformemente,
consistentamente, com mais da metade dos professores de história fazendo
investigação sobre História dos Estados Unidos (excluindo inclusive Canadá e
México).
O fato é que o balanço das forças históricas por
todo o mundo favorece semelhantemente o país natal. Angola, neste momento do IV
Encontro de História de Angola, está a formar os seus próprios historiadores, preparados
para exercer responsibilidade sobre sua própria história, definir a memória
histórico em termos de identidades históricos – isto é, de identidades do
passado - e também de identidades nacionais – e eu não digo “identidade
nacional”, no singular.
Ofereço esta articulação paradoxal da oportunidade
que temos – ou que tem os historiadores do presente e do futuros aqui em Angola
– nos termos definidos para este Encontro (muito conveniente, a próposito,
graças ao bom juizo dos nossos organizadores): como é possível conceber uma
memória histórica nacional em termos plurais, múltiplos? Na epistemologia
histórica, na sua forma clássica nacional, que foi dominante no século vinte (um
século ja terminado, cada vez mais remoto, noto eu), “história” quer dizer uma
história singular, unindo: é sempre a
nossa história, única. Porque a missão desta história nacional é unir, esta
tem que ser em si também única. Contar a história nestes termos singulares é um
ato de singularizar, fazer um conjunto em um só, de obscurecer/marginalizar as inerentes
diferenças entre pessoas e grupos. O lema dos Estados Unidos da América, mesmo
nas nossas notas monetárias, o afamado “dollar bill”, é “E pluribus unum”, “do
muito, uno”.
Mas eu gostaria contradizer esta formulação do
problema e propor uma entendimento menos europeu da História, uma compreensão menos
marcada pela perspectiva dominante dos poderes nacionais dominantes no século
passando, quer dizer, os estados-nacionais europeus - não por acaso também estados coloniais. Esta minha perspectiva
histórica diferente é produto do muito que aprendi dos meus colegas e amigos
angolanos, ao estudar uma história Africana, que não é a minha, e sabendo que a
minha história (ou seja, a história dos Estados Unidos) é limitada e caudatária
da herança europeia da disciplina (de história) como se prática geralmente no
mundo. Este é o sentido do título do comentário/discurso/intervenção que
ofereço nesta ocasião: “A História em Angola: contando a Nação no Mundo e o
Mundo na Nação”. Se nós escrevermos/contarmos a história de Angola em termos
mais africanas, entenderemos não só Angola mas também toda a nação moderna no
mundo não como unidade, que é também
uma entidade essencializada, ou naturalizada, em termos paralelos com os de
raça, quer dizer, qualidades inherentes, inalteráveis.
Num espírito histórico, contrário a tudo isso, a
nação é composta de vários componentes humanos herdados do passado. Nesta
altura, já que ainda estou no início destas observações/desta intervenção, talvez
seja preciso dar mais ênfase a expressão “elementos/componentes humanos
herdados do passado”. Aqui, não me refiro a “tribos” no mau sentido, nem no
sentido colonial de “primitivo”, nem no sentido nacionalista (no sentido
europeu de “nacionalismo”) de divisão inimiga. Não me refiro a “instituições”,
nem a estruturas inalteráveis, dentro das quais as pessoas vivem subjugadas/limitadas/confinadas.
Refiro-me, sim, a construções ideológicas históricas, estratégias flexíveis feitas
com propósitos contingentes e imediatos/curto prazo. Esta definição histórica da chamada “etnicidade”, como
estratégia histórica, adotada em momento precisos do presente, confere dinamismo
ao processo de formação alianças, redes, conjuntos etnologizados (este é um neologismo, verbo feito de nominativo, e
propositadamente assim – quer dizer, assim converte fato dado ao ato contingente)
significa que eu entendo a História como um processo dinâmico, ou
melhor: como complexos/amálgamas de processos históricos, sempre múltiplos, no
plural. Assim estes processos históricos são sempre entrelaçados,
interdependentes uns dos outros, todos misturados como contextos históricos. O
historiador – em contraste com o ideólogo – tem que ter em conta esta qualidade
múltipla, diferenciadamente múltipla, da vida humana, da experiência humana, em
toda a sua riqueza dialética, em toda a sua contrariadade, que é a base mais profunda
da epistemologia da história.
A história não é a observação feita através das lentes
teóricas (e desta forma, propositalmente simplificadoras) do historiador ou de
qualquer outro cientista social. Os chamados modelos das ciências sociais modernas
são precisamente isso: modelos da modernidade, nada mais nada menos. E como nós
sabemos, modernidade é por si só um modelo moderno: nada mais do que isto. O
ato de modelação (interpretar segundo um determinado modelo) equivale ao ato de
simplificar, de extrair um só aspecto duma situação reconhecidamente complexa
demais para se entender/interpretar na sua plena complexidade. O ato de “modelar”
(interpretar segundo um determinado modelo) produz então uma abstração, um
nível abstrato da realidade humana. Isto é, a “realidade” histórica (vivida
pelos atores humanos) é nada mais do que uma experiência invariavelmente arbitrária
(regida pelo que é contingente) – uma arbitrariede da qual o historiador humanística
tem que ter conta. O historiador analisa atos perpetrados pelos homens, e estes
atos ou são produtos, ou são motivados ou são estimulados por esta arbitrariedade.
Em outras palavras, a História, enquanto disciplina, é a única disciplina que
tem como sujeito esta complexidade humana, incluindo mudanças dinâmicas e contínuas.
Por esta razão, “contando a Nação no Mundo e o
Mundo na Nação”, no sentido rigorosamente histórico que eu proponho, não é tão
simples como pode parecer a primeira vista. A complicação é que entre os modelos
modernos interpretativos simplificadores que foram gerados pela modernidade, a própria
“nação” é proeminente, se não dominante. Enquanto modelo, nação é um conceito básico/elementar
na forma como pensamos outras narrativas históricas sociais, culturais, econômicas,
e – evidentemente – também políticas em tempos passados, durante os quais ainda
não havia nação nenhuma. Ningúem produzia a idéia (de nação) e desta forma nem conseguia
realizá-la. Embora nós tenhamos vários eufemismos para dar uma ilusão de
fidelidade aos contextos dos tempos passados claramente diferentes do nosso, nós
achamos difícil evitar o presentismo ou teleologismo do conceito de nação, uma
entidade nacional homogênea ou uniforme. Entre estas abstrações, ou eufemismos usados
para se referir a idéia moderna de nação, mais comuns no passado Áfricano, e
mesmo em Angola, encontramos “estados” (politicos, num senso exato – mas pouco reconhecido
– de Max Weber, que esteve entre os profetas definadores da modernidade
europeia), “reinos” (como eu mesmo utilizei num livro que escrevi no início da
minha formação Africana, quando perigosamente tinha poucos conhecimentos
africanos), e “impérios” (como exemplo familiar em Angola, o dos Lunda ao leste
do país atual).
Voltando outra vez ao título desta conferência, em
relação à dimensão temporal, ao invés do “mundo na nação”, é preciso falar também
do “passado na modernidade”, ou “a herança do passado na nação” de hoje em dia,
em vez da “nação no passado” – que não existia nas experiências de nenhuma pessoa
que vivia antigamente no território que veio a se tornar Angola. Eles não tinham visões do futuro. O conceito da nação, na sua busca de unidade moderna
nacional, trata de só um nível entre as muitas experiências humanas – e por
isso dos processos históricos – de que a história (de um modo apropriado, derivando
da sua própria epistemologia) absolutamente deve tratar. Quer dizer, a “nação”
entendida historicamente não é uma unidade homogênea mas – por outro lado– uma
combinação de comunidades, cada uma parte especifica e válida, dum rico
compósito de elementos distintos. Este compósito também tem uma dimensão
histórico. Em termos temporais, as comunidades componentes da nação vem do
passado. São memórias úteis dos povos, que não são inerentemente conflituosas,
mas contributos distintos à riqueza múltipla e diversa da mesma nação.
O paradoxo
duma nação complexa, composta de diversas entidades humanas e culturais, se resolve
se nós entendemos “nação” não como uma algo singular, e particularmente não
como entidade estável, mas como processo dinâmico e histórico. Se nós
abandonarmos os modelos homogêneos da modernidade como ponto final de História,
o que podemos fazer porque estes modelos são só meios de pensar e não instituições
dadas, realidades em si mesmas, constataremos então que nações são processos
dinâmicos ao invés de entidades acabadas. Veremos então fluxos sempre em
movimento entre passados e futuros. Ampliando a minha ênfase na História enquanto
processo de compilação de elementos diversos, e não como purificação dum tipo
puro e homogêneo, entendemos que o presente é inerentemente incompleto, sempre
em constante transformação.
Além do mais, é importante contemplar o caráter
epistemológico da mudança histórica em si mesma. Sabemos todos – embora num
senso poucas vezes bem-definido – que a História trata de mudanças no tempo. Mas
a falta de especificação/ênfase na qualidade humanistica de História termina
por minimizar o fato essencial de que mudança propriamente histórica é produto
da consciência humana. Por isso a mudança histórica tem qualidades muito
complexas, até contraditórias e irónicas. Não se trata de uma transição, ou
transformação, dum estado estável a outro, na qual os dois estados, ambos
homogêneos (como “nação”), estariam inertes, sem movimento histórico. Embora
tal “período" possa parecer lógico, não há aqui um conceito histórico. A
história, como produto de atos de seres humanos, tem só momentos fugazes, e os
processos constituidos por estes momentos/instantes são iminentemente fluídos.
Contemplemos por um momento a natureza histórica
da consciência humana. Como atores históricos, os nossos conhecimentos são geralmente
muito incompletos, mais ou menos iludidos pelos nossos pensamentos desejosos, a
nossa falta de informação válida, as nossas tendências de negar a pouca
informação que temos mas de que nos não gostamos, e outros aspectos normais da
vida. Neste ambiente fluido da vida humana, estamos todos mal-informados, e
como atores nos tornamos confusos. Contra a ideologia da modernidade, que
parece oferecer informação e oportunidades ilimitadas a toda a pessoa dedicada,
razoável e cometida aos seus interesses individuais e com coragem de aceitar os riscos dum futuro inerentemente não-conhecível,
de fato – como atores históricos – somos cautelosos. E nesta cautela, temos
toda a razão. De fato, a ideologia liberal de arriscar para ganhar, ou melhor
ganhar através do risco, básica às operações do capitalismo, esconde aspectos
críticos do contexto bastante bem definido em que uma tal oportunidade arriscada
puder ter qualquer possibilidade de dar resultados com qualquer confiança, ou
confiança suficiente para contar. Dito assim, isto é nada mais do que uma
tautologia. De fato, é só a gente com recursos bastantes, até riquezas, que se
acham- em posições de arriscar porções pequenas dos seus haveres numa dada
iniciativa. Quer dizer: a ideologia capitalista funciona – num sentido de
oferecer oportunidades suficientemente seguras para agir regularmente – primariamente
para capitalistas bem capitalizados. Os outros, nós, a grande maioria, somos
menos capazes ou inclinados a assumir tais riscos. Como pessoas em
circunstâncias normais, teriamos poucos efeitos gerais manifestados como os processos que
como historiadores nós seguimos.
Ao contrário, focando então na maioria do mundo
na grande maioria dos tempos históricos: nós geralmente atuamos para conservar,
para preservar o que temos, ao invés de arriscar o pouco que temos para tentar ganhar.
E sem arriscar muito, não dá poucos resultados dignos de menção historicamente.
Não gostamos muito de mudança em si (a não ser se sentimos corrupção ou
ausência de circunstâncias familiares que percebemos como normais, e boas). Vivemos
num mundo de realidades imediatas, como a nossa comida do dia, proteção contra
frio, parentes e amigos, as necessidades. Temos poucos recursos para investir e
arriscar fora destes contextos normais. As pessoas não procuram o novo mas –
contrariamente – protegem o conhecido, o familiar. Não perseguem mudança mas atuam
para evitar novidade. É dentro deste entendimento conservatório do ser humano
que devemos conceber processos de
mudanças num modo propriamente histórico. O ideal, e por isso a motivação dos
atores (que é o ponto inicial de todo ato histórico, a fonte de energia humana
histórica) é continuição do que é (do status quo).
Contudo, mudanças históricas continuam por todos
os lados, a despeito destes desejos ou intenções conservadoras dos atores
históricos. As razões deste paradoxo aparente vem do caráter sempre dialético qualquer
da ação humana, ou mesmo também da inação. Agir implica reagir, ou melhor,
reações infinitas pelas pessoas no meio das quais agimos sempre. Somos seres
sociais, relacionados com outros nos nossos tempos e lugares, até além destes
tempos e lugares, muito além do nosso conhecimento ou habilidade de imaginá-los.
As mudanças do tipo propriamente históricas são por isso compostas de
incrementos muito pequenos, impensados, inesperados, não planejados. Numa
palavra, são processos compostos duma infinitude de passos mínimos e relutantes,
até passos que ninguém quis, nem incentivou/promoveu. Os resultados últimos que
nós, historiadores, observamos – além de serem radicalmente diferentes do que
os propósitos dos iniciadores - são mais produtos das nossas observações do que
dos intentos, e atos, das pessoas, os atores histórico, no passado.
Isto se aplica inclusive a “nação” e é um
resultado implícito desta discussão da “nação” como processo essencializado
através dos tempos – e também como ideologia pretendida como ponto culminante
de história. Um tal conceito de permanência, de finalidade, é evidentemente
teleológico e exatamente oposto aos processos dinâmicos de Historia
propriamente concebida.
Mas é inegável que a “nação” foi construída (desde
os meados do século passado), por todo o mundo habitado – território por
território, exceto o continente antártico. Como devemos entender esta realidade
atual nacional, no sentido de uma experiência humana moderna e mesmo universal?
A não ser como citadão duma nação reconhecida por outras nações, ninguém tem
lugar nenhum no mundo moderno. A falta de tal reconhecimento – seja para a
nação mesma, ou para citadões delas – é tão danoso como as excomunhões do
passado nos espaços católicos nas épocas mais intensas de Catolicismo na Europa
na Idade Média. Não ter uma nação é tão tão incapacitante como era a escravidão
em qualquer contexto público – a
chamada “morte social” – através da história do mundo. Porém, a questão central
da História é lembrarmos que a nação atual não é a dimensão única dos processos
históricos nos quais nós nos encontramos – felizmente! Os particulares da nação
como processo histórico centram-se em unificação, mas não como transformação de
um estado passado de ser a um outro estado que está a ser. Em consonância com a
resistãncia humana ao novo, a mudança histórica não exige que nos abandonemos o
passado para entrar no presente. O passado é componente imediata do presente. Também
quando passamos ao nosso futuro vamos levar conosco partes formativas desta
presente, as partes mais criativas. Por isso, a história não é movimento de um estado, com absoluta perda e
ausência, para um outro estado
completamente novo. A História é antes de mais nada acumulação feita aos
pouquinhos, uma série de experiências que trazemos conosco para sempre, como as
mémorias de que nos constituímos as nossas identidades, individuais e
colectivas. O nível nacional do mundo moderno se junta neste complexo de experiências
e é só uma delas.
Como processo histórico, o presente é constituído
destes passados. A boa notícia é que a nação é uma composição e não uma unidade,
nada mais do que um nível recente, entre muitos, de experiências, e como todos
os outros níveis, momentâneo, passageiro, temporário etransitório. Nos
processos dialéticos de história, a nação éassim produto das comunidades do
passado, em sua plenitude, que ainda existem – e
tem que existir – por que são o que são – e tudo que – os atores históricos
trazem aos seus encontros com o presente. A ideologia da nação não teria de
insistir tão duramente sobre unidade como valor absoluto se o contexto
histórico da criação da nação não fosse de outra forma múltiplo, formado de
experiências, de memórias múltiplas, numa tensão dinâmica que anima fortemente
a energia histórica. Desde os fins do século dezoito, quer dizer, desde os
princípios da naçao cívica moderna, atores históricos – ou seja, nós todos – temos
confrontado a novidade da nação grande como cheio de mal-conhecidos outros,
anônimos, talvéz perigosos – com inquietação, uma ansiedade bem compreensível,
entendendo como entendemos as incertezas de seres humanos como atores
históricos. É por isso que a história moderna é tão repleta de violências convulsivas
nos processos de formação de novas nações, desde a Revolução Francesa à Guerra
Civil dos Estados Unidos da América, a Espanha no século vinte, sem esquecer da
Alemanha, e mais recentement em outras partes do mundo, inclusive na África. Quer
dizer: o processo de constituir, de formar uma nação resulta precisamente da
existência das comunidades locais em que as pessoas vivem com os seus familiares,
conhecidos e confiáveis (pelo menos em comitente … entendendo
que andamos todos na ilusão, bem aconselhado ou não, de confiança com os mais
íntimos); elas (as comunidades) acham-se representadas no mundo moderno pela
nação – para bem ou o mal (as vezes simultaneamente).
Ao mesmo tempo, estas comunidades locais mudam na
medida em que se ajustam ao nivel novo da nação, sem desaparecerem ao se
tornarem parte de uma entidade homogênea nacional, mas reconstituindo-se como
componentes de uma composição nacional. Estas comunidades, no esforço de se
ajustarem à novidade forte e imponente da nação, criam versões novas delas
mesmas. O processo histórico não é coisa simples, unilinear, uma transição
progressista de um estado puro anterior a outro posterior semelhantemente puro –
dado a responsibilidade de seres meramente humanos de o criar. De fato, é um
processo contraditório, de definição entre os interesses numerosos, partidários,
grupos, todos participando dialeticamente deste processo. Integrar estas
comunidades é também de redefiní-las, nunca nos termos de passados diferentes
do que o atual mas novamente em termos ajustados, ou ajustando-se, as novidades
do presente. A “nação” é sempre um processo em constante andamento/fluxo. Infortúnio
a quem tentar parar história, como processo.Esta
perspectiva histórica de multiplicidade, dinamismo, contrariadades irónicas,
aplica-se a posição da nação no mundo.
Evidentemente, eu não sou positivista. Na minha
epistemologia da história, a disciplina não é ciência, nem experimental, nem
social. É profundamente humanística. A missão de todas as disciplinas acadêmicas
é explicar, interpretar fenômenos observados no nosso ambiente (inclusive o
passado). E o meu entendimento do mundo histórico, da nação como processo e não
como entidade absoluta, derivam diretamente do muito que aprendi há mais de
quarenta anos aqui em Angola, dos meus colaboradores – ou melhor os meus
mestres – entre os povos Bângalas da Baixa de Cassange. Naquela altura eu ainda
não tinha muita experiência. Fiz então perguntas estúpidas, ou pelo menos
inocentes, todas derivadas da minha formação moderna; eu acreditava, sem ter perspectiva
crítica nunhuma, em “reinos”, “estados”, e outras ficções do mundo abstrato da
modernidade, na minha busca de um “Reino de Cassange”. Meus mestres Bângalas mostraram
muita paciência e tolerância, como seria apropriado em se tratando de um menino.
Entre as muitas lições de vida, inclusive em relação a história, que me então
foram ensinadas estão os princípios epistemológicos com que eu hoje apresentei
os meus pensamentos sobre “a Nação no Mundo e o Mundo na Nação”.
Sem dúvida, existia um Cassange, mas como complexo
político humano, muito importante na história da região e mesmo no mundo
inteiro pelas pessoas escravizadas que negociava com os portuguêses. Este
complexo político era representado ao exterior (e por isso ficou aparente como tal
nos documentos portuguêses e de outros estrangeiros, todos observações de estrangeiros,
isto é, de fora) por uma figura conhecido (outra vez, no exterior) como o Cassange.
Mas no interior deste complex havia uma multidão de relações especificadas,
pessoais, e sempre em movimento/fluxo, acrescentando as novas as antigas, ou
melhor, as que continuavam, algumas delas de datas confirmados ao século
dezeseis pelos documentos escritos. Eu tinha, para meu espanto, encontrado um
história atualizada, um passado literalmente vivo, uma série de passados em
frente dos meus olhos totalmente arregalados de espanto. Eu vi uma compilação
de passados atualizados – de fato preservados conscientemente – no presente. Como
os meus pacientes mestres Bangalas me disseram/explicaram: o passado é como os
ossos dos falecidos, como as cinzas do fogo de ontem.
Apesar da pouca experiência que eu tinha, ainda
consegui ouvir/entender alguma coisa destas lições. Lentamente comecei a
entender, depois de muitos anos anos (por que o saber é também resultado de
processos muito graduais, como processos históricos!). O entendimento africano,
angolano, da História (como o entendimento dos meus colegas angolanos, como
mesmo tinham ficado em 1969, mas sem abandonarem a sua identidade também como
“Bângalas” … ou para o assunto também Quimbundo … ou – embora nunca me disseram
assim – partidários da luta de independência que então estava intensa no país
onde me encontrava) não trata do tempo como estrutura linear (como nós tratamos)
mas antes como uma composição tanto de tempos anteriores como das suas manifestações
atuais e múltiplas, e sempre em movimento. A História é assim. Ironicamente (e
a história não é nada senão irónica), são os povos africanos, deixados fora da
História Universal de Georg Friedrich Hegel, fundador nos princícipios da idade
moderna da moderna disciplina de história, que entendiam a verdadeira
epistemologia humanística da História, como experiência, memórias, e
identidades. A História não é para ver, não é para o observador moderno a
procura duma verdade singular, transparente; é para experimentar, mesmo sentir,
em toda a nossa incongruidade humana. A tarefa do historiador é de entender por sentir.
Para concluir por evocar – mais uma última vez –
o título desta meditação minha na nação, no mundo, e em História como meio
distinto de entender a vida em termos do seu fluxo e da sua inerente multiplicidade,
eu diria diria que o processo da nação é também processo dos seus componentes
humanos: constituam-se mutuamente. É equivalente o processo histórico do mundo,
constituido pelas suas componentes nacionaes. Contando “A História em Angola”,
ou em qualquer parte do mundo, vemos claramente “Nação no Mundo e o Mundo na
Nação”.
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