Igrejas cristãs e nacionalismo angolano: o paradoxo católico
Igrejas
cristãs e nacionalismo angolano: o paradoxo católico
Maria
da Conceição Neto
[in
Mulemba – Revista da Faculdade de
Ciências Sociais da UAN – 2013, vol. III nº 6, pp. 185-202]
Paradoxo,
palavra de múltiplos sentidos, refere-se aqui a uma afirmação ou situação que
sendo aparentemente contraditória é, no entanto, verdadeira. A ideia central do
texto é que a Igreja Católica, assumida aliada da colonização e presumível veículo
da "portugalização" dos povos de Angola, também foi "parteira social"
(no sentido em que ajudou a "nascer") de grupos e indivíduos que [p.
186] tiveram papel decisivo na contestação ao regime colonial e na luta pela
independência. Ex-seminaristas, padres, professores de posto, enfermeiros,
tipógrafos e outros profissionais formados nas missões católicas faziam parte
da minoria de angolanos escolarizados, alguns (mas não todos) escapando por
essa via às contingências do "Estatuto dos Indígenas". Muitos deles
envolveram-se activamente na luta clandestina e na luta armada.
Mas
o paradoxo não termina aí. É do conhecimento geral que os angolanos educados
nas instituições católicas adquiriam maior proximidade cultural com o
colonizador português do que os seus congéneres protestantes. A proximidade,
porém, não inibia a consciência da diferença, podia mesmo torná-la mais aguda,
já que o sistema colonial envolvente produzia a diferenciação na lei e na
prática social quotidiana. Por outro lado, não tem sido dada a devida
importância, no estudo do nacionalismo angolano, ao papel dos Seminários católicos
na formação de uma elite letrada angolana com uma visão abrangente de Angola (à
escala do território desenhado pelas fronteiras coloniais), visão essencial à
existência dessa comunidade política imaginada que é a nação, na consagrada
expressão de Benedict Anderson.[1] A
nação, sendo uma realidade não material, "reside" nas consciências
dos que afirmam que ela existe ou deverá existir, daí decorrendo que qualquer
discussão sobre a incipiência, maturidade ou decadência duma nação, num dado
momento histórico, deva ter em conta esse seu carácter imaterial e imaginado.
Assim se poderá entender que, em Angola como noutras colónias, a transformação
de contestações anticoloniais numa luta de libertação nacional tenha sido,
simultaneamente, resultante e factor de consciência nacional.[2]
Católicos versus
Protestantes
O
presente texto visa ajudar a esclarecer o papel dos Católicos [p. 187] angolanos
nesse processo de contestação anticolonial e de afirmação duma identidade
nacional angolana. Estatisticamente, os Católicos representavam a maioria dos
cristãos angolanos, com minorias protestantes significativas em várias regiões.[3] As
relações entre alguns sectores da Igreja Católica e as organizações nacionalistas
dos anos 50 e 60 do século passado não estão ainda bem esclarecidas. A presença
de ex-seminaristas nos órgãos de direcção de todas as organizações angolanas
que combateram pela independência (Mário de Andrade no MPLA, Rosário Neto na
UPA e FNLA, Miguel Nzau Puna na UPA e UNITA, para citar casos bem conhecidos) não
parece chamar a atenção dos analistas que têm assinalado, sobretudo, a origem
protestante dos presidentes Agostinho Neto do MPLA, Holden Roberto da UPA e FNLA,
e Jonas Savimbi da UNITA. No entanto, o envolvimento na luta anticolonial de
elementos do clero católico angolano foi publicamente reconhecido tanto pela
FNLA como pelo MPLA que, a partir do Congo-Léopoldville (actual RDC), atribuíram
em 1962 cargos de evidente peso simbólico a padres perseguidos pelas
autoridades coloniais: a FNLA indicou o Cónego Manuel das Neves, desterrado em
Portugal, como 2º Vice-Primeiro Ministro do seu Governo Revolucionário de
Angola o Exílio (GRAE);[4] e o
MPLA, na Conferência de Dezembro de 1962, escolheu para seu Presidente de honra
o padre Joaquim Pinto de Andrade, preso em Portugal.[5]
[p.
188] Quanto à ideia que simplesmente identifica os Protestantes como contestatários
da situação colonial e os Católicos como resignados com ela, o caso de Angola
já foi analisado fora desse quadro redutor por investigadores como Christine
Messiant e Didier Péclard.[6]
Limito-me aqui a insistir que qualquer Igreja é muito mais do que os seus
bispos, padres e missionários. A análise do papel da Igreja Católica numa dada
conjuntura tem de incluir as atitudes, estratégias e acções dos seus crentes
que, no caso de Angola, eram maioritariamente os Angolanos sujeitos à
colonização portuguesa. As próprias organizações de base que congregavam os
leigos sob supervisão dos padres, como o Apostolado da Oração ou a Legião de
Maria, eram mais do que simples correias de transmissão da doutrina ou formas
de controlo dos crentes. Elas eram também espaços de socialização por onde
circulavam informações e ideias, não necessariamente conformistas.
As
pessoas educadas nas Missões, fossem católicas ou protestantes, tinham os seus
próprios objectivos e expectativas, por vezes bem diferentes dos desejados pelos
missionários. Os Seminários católicos que, em princípio, deveriam formar
"bons portugueses", ajudaram ao nascimento de uma pequena elite
intelectual angolana que se ressentia do papel subalterno que a situação
colonial lhes destinava, mesmo àqueles que chegavam ao sacerdócio. A maior
ligação à cultura portuguesa (comparativamente com elites formadas pelas
missões protestantes) não impedia a consciência e afirmação da
"angolanidade". Essa referência identitária era, aliás, facilitada
pelo intercâmbio de estudantes de diversas regiões e a pertença a uma igreja
implantada de norte a sul de Angola, sendo a educação nos Seminários idêntica
em todo o território e assente numa mesma língua, a portuguesa.
Era
diferente a situação das principais Igrejas protestantes que, desde o final do
século dezanove e até aos anos 60 do século vinte, tinham as suas áreas de
acção específicas: Baptistas no noroeste de Angola, Metodistas no eixo
Luanda-Malanje e área dos Dembos, Congregacionais na faixa central, do Bié ao
litoral, etc. Como facilmente se deduz, até quase ao fim do período colonial
houve uma relação [p. 189] estreita entre cada uma destas áreas de influência
missionária protestante e um específico grupo etnolinguístico: Bakongo, Ambundu
e Ovimbundu. A acção das missões protestantes terá mesmo ajudado a consolidar
essas identidades acima dos particularismos locais e consolidando a distinção
relativa a vizinhos falantes de outra língua. Para tal contribuiu tanto a
homogeneização linguística (necessária à tradução da Bíblia e outra literatura
missionária) como a criação de grandes centros educacionais regionais, como o
Kesua (Quéssua) dos Metodistas e o Ndondi (Dondi) dos Congregacionais. Note-se,
no entanto, que também as Missões protestantes eram obrigadas a fazer a
escolaridade em Português (e não nas línguas africanas) a partir do famoso
decreto 77 de 1921, de Norton de Matos.
Um
caso original de transição do "regional" para o "nacional"
foi o da Igreja Tokoísta ou Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, a qual começou
com angolanos residentes na colónia belga do Congo, quase todos originários da
região de Makela do Zombo. O seu líder espiritual, Simão Toko, e um grupo de
responsáveis da nova Igreja foram detidos e expulsos para Angola pelos Belgas,
em janeiro de 1950. As autoridades portuguesas mostraram-se igualmente
temerosas do potencial subversivo duma doutrina messiânica que, embora não violenta,
afirmava que o domínio dos brancos em breve chegaria ao fim. Os Tokoístas foram
perseguidos, confinados a determinadas áreas, alguns aprisionados e muitos
desterrados para o centro e sul de Angola, incluindo a Baía dos Tigres e o
mal-afamado Campo Prisional de São Nicolau. O próprio Simão Toko acabou por ser
desterrado para os Açores, após 1961. O resultado da repressão foi a expansão
do Tokoísmo entre grupos linguística e culturalmente distintos e a sua
transformação numa religião de dimensão nacional, embora com um número de
praticantes relativamente reduzido.
A
maior visibilidade internacional do conflito entre o Estado português e algumas
Igrejas protestantes, sobretudo após as revoltas de1961, ou a inegável e
secular cumplicidade da Igreja Católica portuguesa com a colonização, não devem
fazer esquecer as contradições sobre a questão colonial no seio da própria
Igreja Católica, tanto em Portugal como nas colónias. Não se pode, certamente,
analisar a relação entre os Católicos angolanos e o nacionalismo com base na
posição de bispos e padres portugueses que, com poucas excepções, defendiam a
colonização portuguesa. E se é um facto que a Igreja Católica beneficiava
largamente da protecção do Estado colonial e essa situação contribuía para
promover a submissão ao domínio colonial, não é menos verdade que tal
proximidade com o poder abria alguns caminhos à mobilidade social ascendente
dos colonizados. E estes tinham outras ideias e expectativas sobre o seu papel
na sociedade.
Interessa
também referir que as diferenças religiosas entre Católicos e Protestantes,
importantes a vários níveis na sociedade angolana, não eram uma barreira quando
se tratava da luta independentista. Um bom exemplo disso ocorreu quando da passagem
por Luanda de representantes do American Committee on Africa (ACOA), a
principal organização que pressionava o governo dos Estados Unidos a apoiar as
independências africanas. Em Fevereiro de 1960 o pastor James Russell,
Secretário da Aliança Evangélica de Angola, apresentou dois membros do ACOA, Frank
Montero e William Scheinman, ao Cónego Manuel das Neves e ao Padre Joaquim
Pinto de Andrade. O contacto foi secreto, mas O New York Times e o Christian
Science Monitor publicaram no início de Março a história da visita,
sugerindo que os EUA apoiassem o nacionalismo africano nos territórios
portugueses. O pastor Russell foi expulso de Angola e o facto terá contribuído
também para a prisão do padre Joaquim Pinto de Andrade poucos meses depois
(GRENFELL 1998: 262; MARCUM 1969: 133, 137 e nota 49).
Padres e
ex-seminaristas na rota do nacionalismo angolano
Em 1961, nove padres angolanos
encontravam-se num exílio forçado em Portugal, a maioria depois de serem presos
pela PIDE, acusados do crime de "separatismo", ou seja, a defesa da independência
de Angola. A repressão tinha atingido nomes bem conhecidos, como o Padre
Joaquim Pinto de Andrade (preso em Junho de 1960) e o Cónego Manuel Joaquim
Mendes das Neves, Vigário Geral da Arquidiocese de Luanda (preso em 1961, tal
como os restantes) ou, ainda, os padres Vicente José Rafael e Alexandre do
Nascimento (hoje cardeal de Angola). Este último e Joaquim Pinto de Andrade tinham
sido os primeiros seminaristas negros enviados de Angola para se formarem em
Roma, na Pontifícia Universidade Gregoriana, em 1948, por iniciativa do arcebispo Moisés
Alves de Pinho. No
Vaticano havia a consciência, após a segunda guerra mundial, de que o colonialismo tinha
os dias contados e era necessário preparar as novas lideranças, [p. 191] com padres
e bispos oriundos da massa dos crentes africanos. O terceiro a formar-se em
Roma foi o acima referido Vicente Rafael. Os
outros desterrados em Portugal eram os padres Manuel Franklim da Costa, Alfredo
Osório Gaspar (pároco da Muxima), Domingos Gaspar, Lino Alves Guimarães (da
Quibala) e Martinho Samba (de Calulo, padre no musseque Prenda).[7]
Os
padres negros de Angola (também designados como "clero nativo") estavam
em posição privilegiada para conhecer a realidade da situação colonial,
independentemente do discurso oficial do regime ou da própria Igreja Católica.
Embora detentores do estatuto de "civilizado" e, portanto, cidadãos
portugueses por lei, quase todos eram filhos de famílias "indígenas"
e trabalhavam, com poucas excepções, entre essa população legalmente discriminada.
A origem rural e "indígena" da maior parte dos jovens que ingressavam
nos seminários contrabalançava a educação europeia que ali recebiam (com
destaque para elementos da cultura clássica greco-latina) e eles acabavam por
ter um importante papel de intermediários culturais, ficassem ou não ligados à
Igreja. No centro e sul de Angola, onde se concentrava a população de origem
europeia, os padres negros raramente ficavam à frente das paróquias ou da
administração eclesiástica e trabalhavam sobretudo nas Missões.[8] A
situação era diferente em Luanda onde, desde longa data, funções relativamente
importantes eram desempenhadas por membros negros e mestiços do clero, até
porque os padres vindos de Portugal nunca foram suficientes para atender a
crescente população católica.
A
importância dos Seminários católicos ultrapassa, porém, a questão da formação
do clero, já que apenas uma pequena percentagem dos alunos chegou ao sacerdócio,
tendo sido muito maior o número dos que usaram a sua formação como meio de
ascensão social, tornando-se funcionários públicos ou empregados de empresas diversas.
Os Seminários católicos eram a única via para obter a equivalência ao Liceu,
que permitia obter melhores empregos tanto no sector público como no privado.
Era uma vantagem importante num contexto em que o "Estatuto dos
Indígenas" excluía estes do ensino [p. 192] secundário oficial.[9]
Por essa razão, foi possível à Igreja Católica educar uma elite de origem
"indígena" com um nível académico muito acima do proporcionado por
outras igrejas cristãs, legalmente impedidas de criar, nas suas missões, escolas
secundárias equiparadas ao 2º e 3º ciclos do Liceu. Como sintetizou o Reverendo
Henderson, da Igreja Congregacional: "… académica e intelectualmente, os seminários católicos forneceram
os mais rigorosos estudos durante o período colonial", de nível académico
"muito mais elevado que o dos pequenos seminários protestantes e do que o
das escolas bíblicas" (HENDERSON 1990: 181 e 191). Conscientes do problema e da
necessidade de formação de elites letradas no seio dos colonizados, alguns responsáveis
de Igrejas protestantes procuraram, sobretudo a partir dos anos 50, obter na
Europa e Estados Unidos bolsas de estudo universitárias, mas isso implicava a
prévia frequência do Liceu em Angola, o que até 1961 não era possível aos ditos
"indígenas", reduzindo as opções de escolha apenas aos que tinham
estatuto de "cidadãos portugueses" (HENDERSON 1990: 191-197).[10]
É
preciso, pois, investigar melhor o papel dos Seminários católicos na formação
de uma elite angolana cuja relação com o sistema colonial era mais complexa do
que a das suas congéneres protestantes, precisamente pelo papel explicitamente
atribuído às instituições católicas de "portugalizarem" os seus
educandos. Embora mais impregnados de cultura europeia, cultivando mais o
Português e o Latim que as suas línguas maternas bantu, até onde poderia essa
educação apagar as referências culturais das sociedades donde eram originários
os seminaristas, sobretudo quando eles continuaram a viver e a trabalhar nelas?
Como se sabe, os educandos não são simples recipientes onde os educadores
colocam o que querem. Os Seminários, que acabaram por produzir relativamente
poucos [p. 193] padres, formaram muitos angolanos com escolaridade acima da
média em Angola (incluindo a da população de origem europeia), leigos que
continuavam, geralmente, com ligações à sua Igreja e aos seus companheiros de
estudos.[11]
Embora muitos tenham preferido acomodar-se e aproveitar as vantagens possíveis
na sua situação subalterna na sociedade colonial, onde desempenhavam variadas
funções no Estado e no sector privado, não foram poucos os que se envolveram
dum ou doutro modo na luta pela independência, incluindo a luta armada.[12]
Padres
e ex-seminaristas podem também ser incluídos nos grupos aos quais a
"peregrinação administrativa" dava uma noção do espaço nacional
(ANDERSON 1991: 47-66), à semelhança de grupos socioprofissionais, como o dos
enfermeiros ou o dos ferroviários, cuja formação e/ou actividade por um lado os
colocava numa posição de influência, ou mesmo de potencial liderança no seu
meio e, por outro lado, os levava a trabalhar em diversas partes do território
e mesmo além-fonteiras. Essas pessoas tinham facilidade de criar as redes de
contactos por onde circulavam informações e ideias e se prestava apoio a
correligionários. Quando as organizações clandestinas nacionalistas se foram
formando, estas redes informais serviram para o envio de correspondência ou
para apoiar fugitivos.
A
rede de ex-seminaristas que se espalhava por toda a Angola serviu certamente para
difundir ideias e informações, mas ainda não foi aprofundado o seu papel na
actividade política clandestina. Não foi por acaso que o Padre Vicente Rafael,
formado em Roma e um dos mais activos padres nacionalistas, teve a iniciativa
de criar uma "Associação dos antigos seminaristas de Angola", quando
era pároco auxiliar na Liga Nacional Africana. Foi no ano de 1959, poucos meses
depois das sucessivas prisões que conhecemos genericamente como o "Processo
dos 50". A presidir ao "Primeiro Encontro dos ex-seminaristas
residentes em Angola", realizado no início de Outubro, na Liga, esteve o
Vigário-geral da Arquidiocese de Luanda, Cónego Manuel das Neves, em
representação do Arcebispo. [p. 194] O Provincial dos Missionários do Espírito
Santo compareceu também ao Encontro. Dos cerca de 50 ex-seminaristas presentes,
apenas 5 tinham sido formados em Seminários "da Metrópole" o que
mostra bem o carácter angolano do projecto (D'ANTAS 2012: 101-113). Como seria
de esperar, a PIDE apressou-se a reprimir o avanço da organização e o próprio
Padre Vicente, que era também o dinamizador do Grupo Feminino de Santa Cecília,
acabou preso e deportado para Portugal.[13]
O silêncio de Roma
As
contradições no interior da Igreja Católica em Angola ficaram mais visíveis em
1961, quando o Cónego Manuel das Neves e vários outros sacerdotes angolanos
foram detidos pela PIDE e desterrados para Portugal, sem que a Igreja reagisse
publicamente em defesa dos seus padres. Já em 1959 leigos católicos, sendo o
mais conhecido António Pedro Benje, tinham sido detidos na leva de prisões do
"Processo dos 50", juntamente com vários Metodistas. E em Junho de
1960 a PIDE prendera o padre Joaquim Pinto de Andrade, acusado de pertencer ao
MPLA do Dr. Agostinho Neto, igualmente detido por essa altura, tendo ambos sido
transferidos para prisões em Portugal.[14]
A
repressão colonial ganhou novo impulso em 1961, sobretudo após a violenta insurreição
anticolonial de 15 de Março, no norte de Angola. Essa vaga repressiva, levada a
cabo por milícias de colonos, a PIDE, a tropa portuguesa e as autoridades
administrativas, atingiu muito especialmente Baptistas e Metodistas, com a
destruição de missões e postos missionários, e com prisões e mortes de
pastores, diáconos, catequistas ou simples membros das igrejas.[15] Na
Europa e nos Estados Unidos, missionários protestantes denunciaram publicamente
o que estava a acontecer. Esses canais internacionais [p.195] de organizações
missionárias ajudaram também um número significativo de jovens a escapar de Angola
e apoiaram estudantes das colónias portuguesas que fugiram a partir de Portugal.
No interior de Angola, a propaganda portuguesa antiprotestante agravou-se e a
repressão estendeu-se, incluindo zonas bem longe dos focos de insurreição. Como
é natural, a projecção internacional desses acontecimentos deu uma grande
visibilidade às perseguições de que eram vítimas os protestantes em Angola.
A
Igreja Católica, por seu lado, embora dividida a respeito da questão colonial e
com alguns dignitários prestando discretamente ajuda aos perseguidos, absteve-se
de denúncias públicas mesmo quando catequistas seus foram mortos por simples
suspeita de ligação aos "terroristas", ou quando padres angolanos
foram presos e desterrados. A Igreja portuguesa usualmente colocava-se ao lado
do regime e continuava a dar a sua ritual bênção às tropas coloniais, em
cerimónias de exaltação patriótica na lógica do "Angola é nossa, Angola é
Portugal!".[16]
Mas o meio católico português não era monolítico e, à medida que a guerra
progredia nas colónias, as contradições com a política salazarista tornavam-se
públicas, como nos casos do Bispo do Porto e do Bispo da Beira (Moçambique), ou
eram difundidas em textos que circulavam clandestinamente.[17]
Em Angola, o caso mais famoso foi o que envolveu vários padres da Congregação
do Espírito Santo, expulsos de Angola por imposição da PIDE em 1968, incluindo o
antigo director do Seminário do Huambo, o padre Fernando Santos Neves
(HENDERSON 1990: 351-356; SCHUBERT 2000:
94-98 e 100-102).
De
Roma, porém, não veio qualquer condenação pública do colonialismo português e da
repressão de que eram vítimas sacerdotes e leigos católicos. O texto entregue ao
Núncio Apostólico de Lisboa, a 26 de outubro de 1963, pelos padres forçados ao
exílio em Portugal, não podia ser mais elucidativo da posição que assumiam face
à luta pela independência:
A
nossa situação não é apenas um conjunto de casos particulares. Ela deriva de
princípios que vêm de longe e de graves problemas de consciência. … Ligados
pelo sangue e tradições ao Povo, não podíamos, nós sacerdotes [p. 196] angolanos,
deixar de sentir as mesmas aspirações e sofrer as mesmas amarguras. … Observados
de perto com natural ansiedade pela nossa elite leiga e católica, estamos
convencidos de que tomámos a atitude que competia à nossa qualidade de
sacerdotes e de sacerdotes católicos africanos. …
…
Nós sabemos que a emancipação de Angola se há de efetivar, cedo ou tarde, com
ou sem a Igreja. Porém, perante este último dilema, sem deixarmos de ser
angolanos, o nosso sacerdócio não tolera a indiferença, tanto mais que a perspectiva
«sem Igreja» facilmente se converte «contra a Igreja», quando, em situações
idênticas, a Igreja não se insere, no momento devido, mediante os seus
cristãos, nos «ventos da história».
Com
este espírito de apostolado, sofremos a prisão, o exílio, as torturas físicas e
morais, as incompreensões, o desprezo, as acusações tão falsas como ignóbeis,
as difamações mais maquiavélicas, o abandono e as restrições nas próprias
liberdades sacerdotais. E esta situação eterniza-se sem esperanças de solução
para nove sacerdotes.
… E esperamos uma
palavra de consolação e de orientação (quanto ao rumo definitivo a tomar) da
nossa Mãe, a Santa Madre Igreja Católica, Apostólica e Romana.[18]
Mas Roma preferia o silêncio,
pelo menos em público, em grande medida por causa da Concordata e do Acordo
Missionário de 1940 que permitiam à Igreja Católica manter, nas colónias de
Portugal, os privilégios que, além de benefícios materiais, ajudavam à sua
supremacia sobre o protestantismo. E, no entanto, a doutrina da Igreja Católica
também se ajustara aos novos ventos de libertação política após a segunda
guerra mundial. O direito dos povos à autodeterminação fora reconhecido em algumas
Encíclicas, como a famosa Pacem in Terris
(1963) do papa João XXIII, cujo parágrafo 42 tinha sido particularmente
bem-vindo pelos anticolonialistas em todo o mundo: "Notamos finalmente
que, em nossos dias, evoluiu a sociedade humana para um padrão social e
político completamente novo. Uma vez que todos os povos já proclamaram ou estão
para proclamar a sua independência, acontecerá dentro em breve que já não
existirão povos dominadores e povos dominados".[19]
Uma coisa é a doutrina, outra a
estratégia política e o Vaticano não estava disposto a abdicar, a curto prazo,
da aliança com o regime colonial de Salazar. O caso dos padres angolanos desterrados
[p. 197] em Portugal continuou praticamente silenciado nos órgãos oficiais da
Igreja Católica. Em Julho de 1969, o MPLA, a FRELIMO e o PAIGC, numa carta
aberta enviada à Conferência Episcopal Africana reunida em Kampala a propósito
da primeira visita do Papa a África, incitavam os Bispos africanos a solicitarem
de Paulo VI uma clara tomada de posição anticolonial. O texto, assinado por
Agostinho Neto, Uria Simango e Amílcar Cabral, destacava que "a guerra que
Portugal trava nos nossos três países realiza-se com o apoio explícito da
Igreja Católica em Portugal" e que a repressão atingia "os próprios
padres africanos". Apesar de reconhecerem algumas atitudes de oposição ao
regime e ao colonialismo no seio dos Católicos portugueses, a carta afirmava
não se poder "dissociar Roma da Igreja Católica em Portugal, se Roma em si
não o faz". E alertavam: "a posição futura dos nossos povos face à
Igreja Católica dependerá em grande parte da posição que a Igreja tomar hoje em relação ao problema
fundamental que se põe aos nossos povos, a saber, o problema da reconquista da
nossa dignidade e da nossa soberania de povos africanos" (BRAGANÇA e WALLERSTEIN 1978, I:
273-275).
A 1 de Julho de 1970, o papa Paulo
VI recebeu em breve audiência Agostinho Neto do MPLA, Marcelino dos Santos da
FRELIMO e Amílcar Cabral do PAIGC. O gesto era um pequeno mas simbólico sinal
de mudança na atitude pública do Vaticano a respeito das colónias portuguesas e
assim o entendeu também o governo português, que protestou energicamente, pouco
satisfeito com as justificações e explicações de Roma.[20]
Em
conclusão, o que acima foi dito justifica que se aborde de forma mais cuidadosa
do que é habitual a relação entre Igrejas cristãs, anticolonialismo e
consciência de angolanidade. Não há uma equação simples que permita associar os
crentes de uma ou outra igreja ao nacionalismo angolano, deixando aos restantes
o papel de conformistas ou colaboradores do regime colonial. Por caminhos diversos,
a consciência nacional e a reivindicação nacionalista puderam emergir em
comunidades religiosas diferentes. Outros factores, que não a filiação
religiosa, jogaram o seu papel nessa afirmação identitária. O que foi
marcadamente diferente, com consequências que se prolongaram após a independência,
foi a reacção das lideranças das [p. 198] várias igrejas à afirmação do
nacionalismo angolano e à luta pela independência. Os Angolanos católicos
entravam em choque com a hierarquia da sua Igreja, salvo raras excepções,
quando manifestavam o seu anticolonialismo e se decidiam a agir, enquanto os Angolanos
metodistas, baptistas e congregacionais (para citar os principais) sentiam o
apoio material e espiritual das suas Igrejas quando o faziam.
Com ou sem o apoio de Roma e independentemente
da posição assumida pela hierarquia da Igreja Católica em Portugal e em Angola,
a adesão individual de inúmeros Católicos angolanos à luta pela independência foi
um facto. A repressão policial sobre os seus padres, ao invés do pretendido
efeito dissuasor, contribuiu para expandir a revolta, traduzindo-se em mais
adesões à causa da independência. Pode dizer-se que a Igreja Católica que, com
razão, é considerada uma aliada da colonização portuguesa através de séculos,
acabou por "produzir" anticolonialistas com uma forte consciência da
sua angolanidade. Esse é mais um dos muitos paradoxos da História de Angola.
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online).
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PINHO, Moysés Alves de, 1979, Memórias:
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SCHUBERT, Benedict, 2000, A Guerra e as Igrejas. Angola 1961-1991,
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FRELIMO e PAIGC", Actas do Colóquio "Da luta clandestina à proclamação da Independência
Nacional: Memórias de um passado que se faz presente", Luanda, Arquivo Nacional de Angola: 131-139.
[1] ANDERSON (1991:6):
"comunidade política imaginada", no sentido de
"idealizada", "criada" na nossa mente, como são todas as
comunidades mais extensas, em que os membros não se podem conhecer todos uns
aos outros, mas no pensamento de cada um vive a imagem da sua comunhão.
[2] O tema da "nação" e
"identidade nacional" é recorrente entre nós e já tive oportunidade
de intervir sobre ele noutras ocasiões (NETO 2003 e 2004). Igualmente
importante, mas fora dos objectivos deste texto, é a discussão que há anos se
vem produzindo, nos estudos sobre antigas colónias, a propósito das relações
entre Cristianismo, colonialismo, sujeição cultural e apropriação cultural.
[3] Ver Maria da Conceição Neto "Angola
na década 1950-1960: breve introdução histórica" (MEDINA 2003:13-28).
[4] Manuel Joaquim
Mendes das Neves (n. 1896, m.1966) nasceu no Golungo Alto, estudou no Seminário
de Luanda e foi ordenado padre na Missão de Lândana em 1918. Exerceu o
sacerdócio em várias igrejas da capital, incluindo a Missão de S. Paulo dos
Musseques e foi, desde 1949 até 1961, Vigário Geral da Arquidiocese de Luanda e
pároco da Sé Catedral. Personagem influente da Liga Nacional Africana, foi
eleito seu presidente em 1947 e presidente da Assembleia Geral em 1950. Tinha
contactos e correspondência com nacionalistas de várias organizações, dentro e
fora de Angola, nomeadamente com líderes da UPA em Léopoldville e Matadi. Preso
pela PIDE no dia 23 de março de 1961, foi transferido em Abril para a cadeia do
Aljube em Lisboa e, passados meses, colocado com residência fixa no Seminário
dos Jesuítas em Soutelo, no norte de Portugal, onde morreu a 11 de dezembro de
1966. Vários documentos e depoimentos sobre o Cónego in ALVES (2014). Ver ainda
Carlos Pacheco "A figura do cónego Manuel Joaquim Mendes das Neves", Semanário Angolense, Ano I nº 51,
06-03-2004.
[5] Desterrado em
1960 para Portugal e, temporariamente, na Ilha do Príncipe. Preso várias vezes
sem culpa formada, o padre Pinto de Andrade acabou por ser julgado em 1971 e
condenado a mais três anos de prisão maior. Ver COELHO (1971); BESSON (2002); ALVES (2014).
[6] MESSIANT (1989, 1998 e 2000);
PÉCLARD (1998, 1999, 2000 e 2001).
[7] Uma vasta e variada documentação
sobre a actividade, detenção e desterro destes sacerdotes católicos pode
encontrar-se no livro, prestes a sair, de Carlos Alves, a quem agradeço o
acesso antecipado a esses documentos: ALVES (2014).
[8] Aspecto claramente referido, por
exemplo, nos relatórios anuais da Diocese de Nova Lisboa (que abrangia várias
das actuais províncias): NETO (2012), Capítulo 4.
[9] O papel de auxiliar da
colonização atribuído por Portugal à Igreja Católica reforçou-se com o Estatuto
Missionário de 1941 (resultante da Concordata e Acordo Missionário de 1940),
entregando oficialmente àquela Igreja o ensino dos ditos "indígenas",
que se limitava ao ensino primário. As escolas protestantes continuaram mas
como "ensino particular". Apesar da abolição do Estatuto dos
Indígenas em 1961, a divisão do ensino ("europeus e assimilados" por
um lado, "indígenas" por outro) só terminou em 1964.
[10] A situação em Luanda era diferente do resto
do país, pelo maior número de famílias negras com estatuto de
"cidadania" e pela existência do Liceu e alguns colégios particulares
ministrando o ensino liceal, o que explica o número de estudantes oriundos de
famílias metodistas em universidades no exterior, em 1961.
[11] Uma rara autobiografia de um
padre angolano, hoje cardeal, ajuda a entender o ambiente dos Seminários:
NASCIMENTO (2006). Outra autobiografia importante para a história da Igreja
Católica em Angola: PINHO (1979).
[12] Como foi o caso de Nicolau Gomes
Spencer "Mwandoji", guerrilheiro e dirigente do MPLA morto num ataque
português a Samugino, na Lunda-Sul, em Outubro de 1971.
[13] Esse grupo feminino católico
teve um importante papel na tomada de consciência de muitas jovens luandenses,
algumas das quais se juntaram à luta pela Independência. O nome mais famoso é o
de Irene Cohen, uma das cinco guerrilheiras-heroínas do MPLA. O recente livro
de Lizette Furtado D'Antas inclui o testemunho pessoal da autora e vários
documentos inéditos.
[14] Sobre estes processos e prisões
ver MEDINA (2003).
[15] Ver, entre outros, CARVALHO (1994) especialmente o último capítulo
e GRENFELL (1998).
[16] Hino criado e amplamente
difundido na rádio oficial após as revoltas de 1961.
[17] Ver, por exemplo, Boletim Anti-colonial 1 a 9, Porto,
Afrontamento, 1975.
[18] O documento integral está
publicado in ALVES (2014).
[20] Ver reacções portuguesas
oficiais e oficiosas in SILVA (2012).
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